segunda-feira, 10 de maio de 2010

EU, ETIQUETA

Por Carlos Drumond de Andrade


Em minha calça está grudado um nome


que não é meu de batismo ou de cartório


um nome... estranho.


Meu blusão traz lembrete de bebida


que jamais pus na boca, nesta vida,


Em minha camisola, a marca de cigarro


que não fumo, até hoje não fumei.


Minhas meias falam de produto


Que nunca experimentei


Mas são comunicados a meus pés.


Meu tênis é proclama colorido de alguma coisa não provada


por este provador de longa idade.


Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,


minha gravata e cinto e escova e pente,


meu copo, minha xícara,


minha toalha de banho e sabonete,


meu isso, meu aquilo,


desde a cabeça ao bico dos sapatos,


são mensagens,


letras falantes,


gritos visuais,


ordens de uso, abuso, reincidência,


costume, hábito, premência,


indispensabilidade,


e fazem de mim homem-anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada.


Estou, estou na moda.


É doce estar na moda, ainda que a moda


seja negar minha identidade,


trocá-la por mil, açambarcando


todas as marcas registradas,


todos os logotipos do mercado.


Com que inocência demito-me de ser


eu que antes era e me sabia


tão diverso de outros, tão mim mesmo,


ser pensante sentinte e solidário


com outros seres diversos e conscientes


Da sua humana, invencível condição.


Agora sou anúncio


Ora vulgar ora bizarro


em língua nacional ou em qualquer língua


(qualquer, principalmente).


E nisto me comprazo, tiro glória


de minha anulação.


Não sou – vê lá – anúncio contratado.


Eu é que mimosamente pago


para anunciar, para vender


em bares festas praias pérgulas piscinas,


e bem à vista exibo esta etiqueta


global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência


tão viva, independente,


que moda ou suborno algum a compromete.


Onde terei jogado fora


meu gosto e capacidade de escolher,


minhas idiossincrasias tão pessoais,


tão minhas que no rosto se espelhavam


e cada gesto, cada olhar,


cada vinco da roupa.


resumia uma estética?


Hoje sou costurado, sou tecido,


sou gravado de forma universal,


saio da estamparia, não de casa,


da vitrina me tiram, recolocam,


objeto pulsante mas objeto


que se oferece como signo de outros


objetos estáticos, tarifados.


Por me ostentar assim, tão orgulhoso


de ser não eu, mas artigo industrial,


peço que meu nome retifiquem.


Já não me convém o título de homem.Meu nome novo é Coisa.


Eu sou a coisa, coisamente.

Nenhum comentário: